A responsabilidade histórica (1918)

Imagem: site marxists.org

O artigo saiu em Spartakus (janeiro de 1918). A publicação, do grupo liderado por Rosa Luxemburgo, fazia oposição à guerra. Luxemburgo analisa a paz de Brest-Litovski e cobra a responsabilidade dos trabalhadores alemães, que não se rebelam contra as classe dominantes na Alemanha, única maneira, para ela, de salvar a Revolução Russa.


Depois do armistício, a paz especial entre a Alemanha e a Rússia será apenas uma questão de tempo.[1] Entre outras imagens instantâneas da guerra mundial, a história futura certamente eternizará os esgares do absolutismo alemão de meia tigela ao reconhecer os “sanguessugas e conspiradores” como “detentores legais do poder”, ao proclamar solenemente o princípio da não-intervenção em questões de Estados estrangeiros e ao proteger os revolucionários no rio Neva das “difamações da Entente”.

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O processo de Königsberg[2], a espionagem atrás dos russos, os serviços de algoz prestados ao tsarismo – tudo isso já foi esquecido. E por que não? Se a social-democracia alemã esqueceu o programa de Erfurt, por que o governo alemão não esqueceria bagatelas como o processo de Königsberg? Uma coisa condiciona a outra.

Só mesmo confiando piamente na estultice inabalável das massas populares alemãs a reação alemã conseguiu se dar ao luxo do ousado experimento de apertar a mão inescrupulosa dos “assassinos” de Petersburgo, os quais haviam acabado de lançar no lixo o trono, o altar, o pagamento de juros dos empréstimos externos, as corporações, títulos e diversas outras coisas sacrossantas, os quais penduraram comandantes de alta patente rebeldes de cabeça para baixo nos vagões de trem e encarceraram príncipes incômodos de linhagem pura. O absolutismo prussiano-alemão de meia tigela em íntimas negociações com os Lênin e Trotsky, que há poucos anos ainda precisavam evitar o presídio policial de Berlim! – Quem não se lembra da deliciosa cena em “Meu tio Benjamin”, quando o orgulhoso e arrogante senhor conde, com uma espinha de peixe atravessada na goela, beija o desprezado doutor burguês naquela parte do corpo normalmente coberta, só para garantir a sua ajuda salvadora? A necessidade não tem lei, já disse o chanceler do Reich, Bethmann Hollweg.  Os Hindenburg e Ludendorff certamente teriam preferido mandar sua polícia conversar com o “bando” de Petersburgo. – Mas calma. Que tais desejos íntimos fiquem reservados para outra oportunidade. Por enquanto, o bando de Petersburgo é altamente oportuno, e seu evangelho de paz revolucionário soa ao imperialismo alemão como a mais pura música celestial.

Segundo relatos de imprensa, Trotsky fez várias palestras no Comitê Central soviético sobre a situação internacional, narrando nos tons mais róseos os efeitos da oferta de paz russa a todos os países. Segundo ele, a Europa ocidental estaria demonstrando que “as esperanças mais ousadas” dos sovietes russos se cumpriram e que a paz generalizada estaria no melhor caminho de se concretizar.

Se esses relatos de imprensa estiverem corretos, será preciso jogar muita água no vinho espumante de Trotsky. Psicologicamente, compreende-se que os bolcheviques, na sua situação atual, na questão mais decisiva – a da paz – precisem ver sua política de Estado coroada de sucesso e apresentá-la dessa forma também ao povo russo. Um exame mais objetivo das coisas lança uma outra luz sobre a questão.

O próximo efeito do armistício no leste será apenas o deslocamento de tropas alemãs de leste para oeste – o que, aliás, já aconteceu. Que Trotsky e seus camaradas consolem a si e aos seus sovietes por quererem negociar, como condição do armistício, o compromisso de não realizar mais nenhuma movimentação de tropas para não tomar de assalto as potências ocidentais. Ao ouvir o anúncio, os militares alemães devem ter dado sonoras gargalhadas, porque certamente não são idiotas. Antes mesmo da assinatura do armistício, centenas de milhares de soldados alemães foram transferidos da Rússia para a Itália e Flandres. Os últimos confrontos sangrentos alemães em Cambrai e, ao sul, os novos êxitos “brilhantes” na Itália, já são consequência da revolução bolchevique de novembro em Petersburgo.

Ainda sob o calor das cenas de confraternização dos soldados russos revolucionários, das fotos coletivas de grupo conjuntas, de canções e vivas à Internacional, os “camaradas” alemães já se lançam ao fogo com as mangas arregaçadas em ações de massa heroicas para, por sua vez, massacrar proletários franceses, ingleses e italianos. Com o fornecimento fresco de bucha de canhão alemã em massa, o massacre se multiplicará por dez em todo o front ocidental e sul. É mais do que óbvio que, dessa forma, a França, a Inglaterra e a América se verão motivadas a esforços extremos desesperados. E assim, como próximos efeitos do armistício russo e da paz em separado no leste a ele associada não resultará a aceleração da paz generalizada, e sim, em primeiro lugar, a ampliação do massacre dos povos e a potencialização imensa de seu caráter sangrento, reivindicando vítimas dos dois lados em proporções inéditas; em segundo lugar, um enorme fortalecimento da posição militar da Alemanha e, com isso, de seus planos e apetites mais ousados de anexação.

A leste, trata-se da anexação da Polônia, da Letônia e da Curlândia, de forma aberta ou ainda velada, algo já acordado com as outras potências, e, diante da verdadeira posição da Rússia, o imperialismo alemão evidentemente nem conta mais com a sua séria resistência nas negociações de paz.

Mas também a oeste – tendo se livrado de qualquer preocupação a leste e provido com reservas frescas – o imperialismo alemão planeja agora uma nova jogada. Em breve lançará, rindo, no colo de Scheidemann a máscara do seu despojamento virtuoso, a que se viu obrigado pela situação precária em que estava até agora, e, se existir um Deus – que sabidamente sempre está do lado dos batalhões mais fortes – ditará uma “paz alemã”. Em suas palestras mais recentes, Czernin[3] e seus seguidores já falam com um tom bem diferente dos tempos do documento papal sobre a paz.[4]

Essa é a situação, e os bolcheviques cometerão um autoengano, se, à luz da paz separada, também estiverem vendo o céu da paz generalizada recheado de sons musicais. Os únicos “terceiros” a rir, na revolução russa, até agora são unicamente Hindenburg e os pangermanistas.

Mas, se assim as coisas e os efeitos estiverem se transformando no seu contrário, a responsabilidade não deve ser buscada de forma alguma em primeiro lugar junto aos russos. Desde o início eles se viram na fatal situação de ter que optar entre dois castigos: prestar serviços à Entente ou então ao imperialismo alemão. A primeira opção significaria a continuação da guerra e a segunda – a assinatura da paz. Não admira terem escolhido a segunda!

Pois toda a conta da luta pela paz russa se baseou na condição tácita de que a revolução na Rússia deveria ser a senha para o levante revolucionário do proletariado no ocidente: na França, na Inglaterra e na Itália, sobretudo na Alemanha. Só nesse caso – e, nesse caso, indubitavelmente – a revolução russa teria significado o início da paz generalizada. Mas isso não aconteceu até este momento. Exceto alguns corajosos esforços do proletariado italiano, a revolução russa foi abandonada pelos proletários de todos os países. Acontece que a política de classes do proletariado, que é internacionalista em seu cerne e por natureza, só pode ser concretizada no âmbito internacional. Se continuar restrita a um único país, enquanto o operariado de outros países segue políticas burguesas, a ação da vanguarda revolucionária também será virada de cabeça para baixo. Assim sendo, os únicos efeitos internacionais da revolução russa são, até agora, um enorme aumento de poder do imperialismo alemão e um acirramento da guerra mundial. A culpa por esse trágico quiproquó histórico recai em primeiro lugar sobre o proletariado alemão. Ele carrega a principal responsabilidade diante da História pelos assombrosos rios de sangue que estão sendo derramados, assim como pelas consequências sociais e políticas de uma possível derrota das nações ocidentais pelo triunfante capitalismo alemão. Pois foi a postura de cadáver do proletariado alemão que pressionou os revolucionários russos a assinarem a paz com o imperialismo alemão como sendo o único poder da Alemanha. E só essa mesma postura de cadáver permitiu ao imperialismo alemão aproveitar-se da revolução russa.

Será que os trabalhadores alemães sequer sentem a bofetada que reside no fato de seus donos do poder saudarem, sem constrangimentos, os quepes vermelhos jacobinos em Petersburgo, no mesmo instante em que mandam a chamada representação popular alemã como um cão para a sua casinha, apertando ainda mais a focinheira do povo alemão?[5] Os “líderes operários” alemães não parecem perceber a demonstração de carinho. Insistem em recomendar – também os independentes – ao governo alemão que não perca a oportunidade, que não seja melindroso, que não recuse a “mão estendida da paz russa”. Não se preocupem, brava gente, o imperialismo alemão certamente não perderá a oportunidade de mandar os jacobinos de Petersburgo tirar as castanhas do fogo com a mão do gato. Os “líderes operários” nem precisam contrair despesas elevadas.

E diante dessa guinada – a qual, a partir de um tratado de paz, do prolongamento da guerra, da vitória revolucionária do proletariado russo, fortalece o poder de meia tigela do absolutismo alemão – os membros da Arbeitsgemeinschaft [comunidade de trabalho] não encontram nada mais urgente do que reivindicar o anúncio dos “objetivos de guerra” do governo alemão! “Onde estão os objetivos de guerra da Alemanha?”, brada o Leipziger Volkszeitung. Os gramofones “independentes” só têm esse único disco e não cessam de tocá-lo. “Se o governo alemão insistir na sua atual política, haverá essa ameaça (a continuação da guerra até a destruição, até a catástrofe total da Europa – R.L.) – apesar da disposição dos russos para a paz!”[6] Assim o órgão do partido de Leipzig fecha a sua centésima advertência ao governo alemão.

Ah, céus, naturalmente o governo alemão insistirá em sua “política atual”. Não saberíamos dizer por que teria qualquer motivo de mudar sua política enquanto “comitê executivo das classes dominantes”. Quem tem todos os motivos para mudar a política atual é a classe trabalhadora alemã. A não ser que a guerra leve à destruição geral ou ao triunfo da reação alemã mais extrema, dela depende livrar-se da política atual, a da bucha de canhão, e “anunciar” publicamente os seus “objetivos de guerra” contra o imperialismo. 

Não se pode atingir a paz geral sem derrubar o poder em vigor na Alemanha. Só com a tocha da revolução, na luta de massas aberta pelo poder político, pela dominação do povo e pela República na Alemanha, será possível evitar um novo surto de massacres e o triunfo da anexação alemã a leste e a oeste. Os trabalhadores alemães, agora, estão convocados a levar a mensagem da revolução e da paz de leste para oeste. Não adianta muxoxar, é preciso apitar.

 

Spartacus, nº 8, janeiro de 1918

In: Spartakusbriefe, Berlim, 1958, p. 406-411

 

[Tradução: Kristina Michahelles]

*Publicado em Gesammelte Werke 4, Berlim, Dietz, 1987, p.374-79. Artigo não assinado. Originalmente publicado em Spartakus im Kriege. Die illegalen Flugblätter des Spartakusbundes im Kriege, gesammelt und eingeleitet von Ernst Meyer, Berlin, 1927 [Spartakus na guerra. Os panfletos ilegais da Liga Spartakus na guerra, coligidos e apresentados por Ernst Meyer], onde Rosa Luxemburgo é mencionada como autora.

[1] Depois do decreto sobre a paz promulgado em 8 de novembro de 1917 pelo 2º Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, propondo a todas as nações em guerra negociações para uma paz justa e democrática, tendo como condição a assinatura imediata de um armistício, no dia 3 de dezembro de 1917, em Brest-Litovsk, começaram as negociações com o Alto Comando alemão, após a recusa enérgica de qualquer negociação por parte das potências ocidentais. O governo alemão perseguia o objetivo de fechar uma paz separada, para assegurar o roubo de territórios no leste e ter as mãos livres para ampliar os esforços de guerra no front ocidental. A ideia era ludibriar as massas populares revoltosas na Alemanha por meio da aparente disposição do governo para a paz.

O armistício foi assinado no dia 15 de dezembro, acordando-se o início das negociações de paz para o dia 22 de dezembro. Com o tratado vergonhoso de “paz” de Brest-Litovsk, assinado em 3 de março de 1918, a Rússia Soviética perdeu um território de cerca de 1 milhão de quilômetros quadrados. No interesse da revolução, o governo soviético se viu obrigado a concordar com essa negociação a fim de criar um intervalo pacífico e permitir aos povos russos consolidar o poder soviético e criar um exército capaz de proteger o país contra a contrarrevolução interna e as intervenções imperialistas.

[2] Nove social-democratas alemães haviam sido acusados de alta traição contra a Rússia, de ofensa ao tsar e de espionagem em um processo em Königsberg (hoje Caliningrado) de 12 a 25 de julho de 1904, só porque haviam levado literatura revolucionária para a Rússia. Karl Liebknecht, um dos defensores, criticou a repressão brutal na Rússia e a cooperação entre as autoridades prussianas e tsaristas.

[3] O conde Ottokar Czernin von und zu Chudenitz, ministro das Relações Exteriores da Áustria desde 1916, chefiou a delegação austríaca durante as negociações de paz de Brest-Litowsk.

[4] No dia 1º de agosto de 1917, o papa Bento XV conclamou os governos dos países em guerra a buscar uma paz justa e duradoura. Como base para as negociações, recomendou os seguintes pontos: redução do armamento, criação de um tribunal especial, garantia da liberdade nos mares, renúncia a reparações de guerra, devolução dos territórios ocupados e acordo pacífico sobre divergências territoriais.

[5] No dia 1º de dezembro de 1917, o presidente do parlamento alemão (Reichstag) recebeu permissão de fixar, sozinho, data e agenda da sessão seguinte.

[6] Onde estão os objetivos alemães da guerra? In: Leipziger Volkszeitung nr. 282, de 4 de dezembro de 1917.